Connect with us

Cultura

Francelino Wilson e a metáfora do que ele se tornou

blank

Publicado há

aos

blank

Ainda tentamos compreender o silêncio que se instalou desde o último sábado, quando recebemos, de Lisboa, a notícia da morte do nosso amigo, irmão e companheiro de muitas jornadas, Francelino Wilson. Passaram-se dias, mas continua difícil falar dele no passado. Francelino foi mais do que um escritor promissor: foi um bom amigo, um mancebo que acreditava no poder das palavras para mudar o mundo.

Hoje, ao revisitarmos um texto seu de há muitos anos, queremos mais do que recordar: queremos celebrar o percurso de um rapaz da cidade-mártir, que trocou a bola de trapos connosco pelos livros, que fez da curiosidade um ofício e da escrita uma forma de servir.  Nesta memória viva, escrita pelo próprio, reencontramos o Francelino sonhador, inquieto e grato ao apoio que recebeu dos Leigos para o Desenvolvimento — o jovem que descobriu o jornalismo na Bioteca, a poesia no CEPAN e a vocação docente que o levaria até à Universidade Púnguè e, mais tarde, ao Porto.

Este testemunho — “Das teias de aranha às jubas do leão” — é mais do que uma crónica do seu início. É uma metáfora perfeita do que ele se tornou: um homem que acreditava que as pequenas forças, unidas, podiam amarrar um leão. Publicamos de novo este texto como quem acende uma vela — para que a voz de Francelino continue a iluminar o caminho de todos os que sonham, escrevem e acreditam. (Félix Filipe)

Das teias de aranha às jubas do leão

blank

Que a voz de Francelino continue a iluminar o caminho de todos os que sonham, escrevem e acreditam

“Eu era um menino. Não sei ao certo quantos anos tinha. Frequentava o ensino primário. Recordo-me que, a primeira vez, aquele grupo de senhoras “brancas” interrompeu-nos no jogo da bola, a nós (eu e os outros meninos do meu bairro), para perguntar onde ficava a Marieta. A Marieta, como era conhecido aquele lugar exótico, era a quinta da Dona Marieta, uma tal de nacionalidade holandesa (se a memoria não me atraiçoa), que mais tarde passou a chamar-se Quinta Capricórnio. Ali, mesmo para quem desce para o largo do pinhal do meu bairro. O grupo de senhoras “brancas” fazia-se transportar de um Land Rover daquela e das outras vezes que por nós passou.

Para ser sincero, mais que indicar o caminho que as levaria à quinta da Dona Marieta, naquele dia fomos juntos. Deixamos a bola de trapo e seguimos, creio que justificamos que assim indicaríamos melhor, pois sozinhas elas corriam o risco de perder-se e o pinhal era perigoso (qualquer coisa…). Pelo menos desta vez nós não baloiçamos na traseira do carro em movimento como o fazíamos das outras vezes com os outros carros.

E assim nasceu aquela amizade. Sempre que elas passavam por nós não faltava aquele aceno de mãos, aquele ta-ta… e, nalgumas vezes, até sobrava uma mãozinha sobre o cabelo, uma fotografia…

Fui perceber que aquele grupo de senhoras “brancas” pertencia a uma organização de voluntários mais tarde. Primeiro na igreja, a Sé Catedral de Lichinga, e depois nos outros espaços que juntos partilhamos.

Quando eu fiz a 10ª Classe, o primeiro ciclo do Ensino Secundário, o Eliseu Armando (amigo meu do programa radiofónico da Rádio Esperança FM, Artes e Reflexões) convidou-me para fazer parte do jornal Bioteca. Que estranho, hem!… Eu a virar jornalista, já poesia mal sabia escrever…

Na verdade, o Eliseu estava de malas aviadas a Maputo para fazer a licenciatura e precisava de alguém para fechar o seu lugar no jornal, pelo menos no jornal. Ofereci resistência, a partida, como seria de esperar, a desculpa sempre a mesma: não terei tempo, o segundo ciclo do ensino secundário é mais exigente e eu preciso de tempo para estudar. Mas o meu amigo, teimosamente, achou um trunfo para me convencer. Eu acabava de tirar o meu curso básico de uso de computadores, esse foi o triunfo que ele achou. Lá foi o Eliseu, Francelino se não gostares da experiência de jornalista pelo menos ganhas prática no uso do computador, eles lá têm computadores a disposição para todos os jornalistas. Cai de quatro, como se diz! Computador era coisa nova para nós jovens do meu tempo, na cidade de Lichinga. Lembro-me que a primeira vez que eu quis inscrever-me num curso de informática no Centro dos Leigos para o Desenvolvimento perguntaram-me se já tinha feito a 10ª Classe e como ainda não tinha feito essa classe disseram-me para esperar até o outro ano, assim que tivesse terminado a 10ª Classe. Talvez por isso não fiz o meu curso naquele centro… Hoje nem precisa de ir à escola para estar diante de um monitor, um Facebook e la lala lala… Novos tempos, novas vontades!

Aceitei o desafio do Eliseu. Incorporei a equipa do Bioteca, fiquei jornalista. Não é que jornalista é a profissão que mais teima em sair de mim? Primeiro foi como hobby, nos tempos do Bioteca, Artes e Reflexões e depois, como carreira, na Rádio Moçambique – Emissor Provincial do Niassa. E nessa história de jornalista se foi uma década, entre a imprensa escrita e a radiofónica. E hoje voltou a ser hobby, numa coluna de um jornal ou mesmo chefiando a equipa do jornal da Universidade Pedagógica em Manica, onde trabalho como docente.

Aqui vou ancorar o meu texto. Penso que tenho alguma propriedade para relatar a minha experiência pelo BioTeca junto dos Leigos para o Desenvolvimento.

Dentre as várias componentes que perfaziam o projecto dos Leigos para o Desenvolvimento na cidade de Lichinga estava a Biblioteca ÁfricAmiga, de onde se produzia o jornal de parede vulgo Bioteca. Era um jornal de estudantes para estudantes, na essência. Falava de tudo um pouco, sociedade, religião, cultura, desporto, culinária, humor e tudo que podia interessar a um estudante, menos política.

Com a veia de escritor amador, os meus primeiros textos no Bioteca foram em versos, se eram poemas quero lá saber! Seguiram-se as breves, as notícias, as crónicas até chegar aos textos de opinião e aos editoriais. Se cheguei a ser editor? Acho que não, com o meu jeito rebelde, inconformado, questionador não dava para chefe e ainda hoje não dá.

Não me esqueço das vezes que discuti com a Vera Martins, ela dizendo tira a palavra “monhé” do seu texto porque ela é pejorativa e eu a rebater que não, se esta palavra sai a minha crónica deixa de ter sentido. Pelo menos aquela crónica não passou no jornal, só por causa da palavra “monhé”. E se perguntarem a Margarida Sanches certamente terá uma partida para contar a meu respeito. É… esse espírito, não diria de revolta, mas de discussão acesa, divergência de ideias, acutilância, creio que foi temperando nas páginas do “pequeno” BioTeca.

Com a Vera Martins, reconheço-a grande professora de Língua Portuguesa, mais do que escrever textos para o jornal desenvolvemos uma coisa que se chamou sugestão de leitura. Primeiro como uma página de jornal, no Bioteca, e depois como uma rubrica do programa Cultura em Relance da Rádio Moçambique. Uma vez por semana, de forma rotativa, alguns de nós do jornal líamos um livro e fazíamos uma apreciação geral, temática, estilo, estória, etc. e sugeríamos aos potenciais leitores. Parecendo que não, aquilo contribuiu nas escolhas que fiz futuramente até hoje me tornar um apreciador da literatura, escritor se quiserem, docente de língua. Ademais, se alguém quiser falar sobre movimentos literários em Moçambique é justo falar da cidade de Lichinga. Aquela pequena semente lançada pelos Leigos para o Desenvolvimento em jeito de Bioteca ou sugestão de leitura gerou árvores frondosas com raízes capazes de ancorar um navio, iguais as teias de aranha que podem amarar um leão. Ler Capitães de Areia, de Jorge Amado, Xigubo, de José Craveirinha, Os Lusíadas, de Luís de Camões, Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, etc. é coisa que só se fazia na biblioteca ÁfricAmiga. E juntar toda a força ideológica, beleza estética desses autores só poderia dar naquilo que deu. E em que deu? O Eliseu, biólogo; o Sérgio Roques, antropólogo; o Francelino, escritor e futuro linguista; o Didier Mugabe, médico; a Ludimila Jonasse, médica. E há mais exemplos que só não vou escrever para não saturar a página e a paciência do leitor.

Ahm! O que dizer do Ricardo Perna, sempre amigo?! Um homem que trouxe mais técnica em tudo que fazíamos. Teve a sorte de encontrar o barco no alto mar, mas deu-o mastros de fibra. Organizou uma formação em jornalismo básico cujo saber tenho usado nestes anos todos de aventura jornalística. Quando não fui a universidade por razões que ele sabe, acolheu-me como bibliotecário na Biblioteca ÁfricAmiga. Aqui encarregou-me a dura e gratificante tarefa de animar a biblioteca com programas que pudessem atrair mais leitores. E quantos concursos de literatura fizemos? Sessões de cinema? Hip-hop? Declamação de poesia? Humor? E das vezes que fomos à praia, à balada ou às cerimónias simples da cidade de Lichinga? Ficam memórias que jamais o tempo apagará.

Não fecharia esse texto sem fazer menção da Inês Correia. De tudo que podia escrever sobre ela, ressalta o seu lado de entusiasta cultural. A história cultural da cidade de Lichinga tem um pedaço de Inês Correia. O Xavito é disso testemunha. Quem sabe ele também possa um dia escrever como eu o faço agora? Seria bom! A generosidade dessa mulher sorri no rosto dos fazedores da arte e cultura da cidade de Lichinga. Graças ao seu apoio material e moral o Xavito pintou e exportou quantos quadros para a Europa. E nós? Eu, o Euse, o Mouzinho, o Eliseu, o Roques, o Rogers, o Didier, o Aide, a Ludília… a lista é grande, publicamos a antologia Jóia Niassa Metáforas do Ventre, pela Papiro (editora portuguesa). Esse seu gesto de generosidade ficou assim grafado para sempre na história dos homens, já que esses passam, mas os seus escritos não. Então a Inês fez-nos acreditar que podíamos ser poetas, não pela qualidade, mas pelos livros que até então eram coisas só de verdadeiros poetas.

Enfim… Com os Leigos para o Desenvolvimento saímos do pequeno bairro aonde jogávamos a bola de trapo, para quem vai à quinta da Dona Marieta, para o mundo. Aprendemos a ser mais homens e a correr não só atrás da bola de trapo, mas também dos sonhos. Aguçamos o nosso espírito crítico, de revolta e nos encontramos com a essência das coisas no concerto das nações. Aprendemos a não indicar os caminhos a quem quer chegar à quinta da Dona Marieta, mas a seguir viagem juntos como as águas do rio que se batem em pedras e embatem nos cascos duros das naus e lá estão sempre juntas. Aprendemos não só a carregar as nossas cruzes as costas, mas a erguer uma bandeira, cientes das cores que ela tem. E assim fizemo-nos mais moçambicanos, da diferença que aprendemos dos outros.

Estamos juntos!

Francelino Wilson

Continue Lendo
Clique para comentar

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *