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Opinião

Adeus Atokwene, Mukhwarura!

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Morreu o meu amigo Francelino Wilson. Morreu o Mukhwarura — o escritor, o bon vivant, o companheiro de noites longas e conversas sem destino pela baixa de Maputo. A notícia chegou na manhã de ontem, fria, vinda de Lisboa. E desde então, tudo em mim é um vazio.

Há pessoas com quem se vive a literatura; e há outras com quem se vive a vida. O Francelino era as duas coisas, mas principalmente essa última. Com ele, cada encontro era uma crónica por escrever, cada copo de uma gelada que sorvíamos, uma metáfora. Quando vinha a Maputo, nunca deixava de perguntar por mim — queria o seu Atokwene (mais velho) como me chamava, seu bom parceiro da boémia, o cúmplice de bares e madrugadas nas noites da capital. Era assim que nos reencontrávamos: entre cervejas, risadas e silêncios cúmplices, a falar de mulheres, e dos absurdos deste país que nos apaixona e nos cansa.

Mas o tempo, esse ladrão que nos rouba sem pressa, começou a afastar-nos. Já não falávamos tanto. A última vez foi em Junho. Disse-me que viria a Nampula — “e queria mais uma sessão etílica e divertida, como nos bons velhos tempos”, prometeu. Veio, mas não nos encontramos. E agora sei que nunca mais virá.

Era um homem de talento nato e raro. Não forçava a escrita. O seu livro “Nikokwe: A Reforma da Prostituta” — relançado recentemente no Brasil, depois de quinze anos — foi e continua a ser uma bofetada literária contra a hipocrisia social. Um mergulho cru e belo nas profundezas humanas, sem pudores nem censura. Nessa obra, Mukhwarura deu voz a quem nunca teve, com a lucidez de quem conhecia os abismos da alma e a coragem de quem não temia o escândalo.

O académico brilhante — doutorando em Ciências da Linguagem, mestre em Linguística, investigador apaixonado pelas línguas Bantu — convivia no mesmo corpo com o homem simples, risonho e livre. Era capaz de falar sobre fonologia com o mesmo entusiasmo com que descrevia a luz das ruas da baixa ao cair da noite.

Hoje, ao saber da sua partida, sinto uma dor funda, dessas que não têm nome. Porque mais do que um escritor, perdi um pedaço da minha adolescência desde a cidade-mártir, (Lichinga) da minha boémia, da minha história. Ficou-me a promessa quebrada de uma sessão de copos em Nampula. Ficou-me o eco do riso. Ficaram-me a certeza de que, onde quer que esteja, Mukhwarura há-de estar à mesa de um bar celeste, rindo alto, discutindo ideias com anjos cansados, e brindando à vida, como sempre fez.
Adeus, Atokwene.
Félix Filipe

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