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Editorial

Blame Shifting: a estratégia cobarde adoptada pelo governo

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Em Moçambique, a transferência de culpa tornou-se um instrumento fundamental da governação. A cada crise, a cada morte injustificada, a cada abuso de poder, o governo e as suas instituições recorrem a essa prática vil para se eximirem de responsabilidades e perpetuarem a impunidade. Os agentes das forças de defesa e segurança matam um cidadão indefeso nas ruas? O culpado é quem organizou a manifestação.

 Um bebé de alguns meses de vida passa mal por ter inalado a fumaça de gás lacrimogénio dentro da sua própria casa, nos becos imundos da Maxaquene ou da Polana-Caniço? A culpa é dele, por ser um recém-nascido e, portanto, “potencialmente perigoso”. Uma jovem cabeleireira, a trabalhar dentro do seu estabelecimento comercial, é alvejada pela polícia até perder a mandíbula? O discurso oficial apressa-se em insinuar que ela se envolveu em “actividades suspeitas”.

Esse é o padrão, esse é o jogo sujo e nojento de manipulação que desvia o olhar da sociedade do verdadeiro problema: um regime que se sustenta pela fraude, pela corrupção, pela repressão, pelo medo e pelo silenciamento. Blame shifting é a prática de transferir a culpa por um erro ou falha para outra pessoa ou circunstância, em vez de assumir a responsabilidade.

É comum em contextos como política, relações interpessoais e ambientes de trabalho, onde alguém tenta evitar consequências negativas culpando terceiros. No caso do nosso país, blame shifting não é apenas uma estratégia de desinformação; tem sido usado como uma política de Estado. Ela opera como um escudo de protecção para um sistema de violência institucionalizada, onde os verdadeiros responsáveis pela opressão nunca são responsabilizados. Essa estratégia tem um objectivo claro: inverter os papéis, transformar o opressor em vítima e o oprimido em culpado.

O que acontece ultimamente com os jovens que têm sido assassinados pela polícia não é um incidente isolado, é uma norma. Quantas vezes já assistimos esse filme? A polícia, armada até os dentes, dispara contra civis desarmados, e no dia seguinte, os comunicados oficiais apresentam justificações absurdas: “estiveram em manifestações violentas”, “tinham intenções de fazer um golpe de Estado”, “colocaram em risco a soberania nacional”. Ora, se protestar contra um governo incompetente significa colocar em risco a ordem pública, então a verdadeira ameaça à paz não são os manifestantes, mas sim o próprio governo.

Se sair à rua para reivindicar direitos básicos como saúde, educação, segurança e preços justos dos produtos de primeira necessidade é um acto que merece ser punido com “a pena da morte”, então estamos diante de um Estado que já não governa para os cidadãos, mas sim contra eles.

O silêncio oficial sobre as execuções extrajudiciais, o desaparecimento forçado de jovens, apoiantes de Venâncio Mondlane, revela o carácter autoritário do regime. Quando a polícia actua como um esquadrão da morte, e os tribunais ignoram a barbárie, o país caminha para o abismo.

A pergunta que não quer calar é: quando é que foi a última vez que um agente do Estado foi julgado e condenado por matar um cidadão inocente? O governo fala de “excesso de zelo”, de “acções isoladas”, ou de “erros operacionais”. Mas a verdade é que a impunidade é norma, não excepção e os responsáveis pelas ordens de repressão nunca aparecem. As cadeias estão cheias de pobres que roubaram patos ou galinhas, mas vazias de polícias que assassinam cidadãos.

A Justiça, essa senhora cega, só vê quando lhe convém. Quanto a nós, o Estado moçambicano comporta- -se como um delinquente reincidente, que, mesmo diante de provas irrefutáveis, se recusa a assumir a culpa. E, pior, joga a responsabilidade sobre quem ousa apontar o problema. Os jornalistas que denunciam os abusos são perseguidos ou cooptados. Os activistas que exigem justiça são ameaçados e sofrem atentados. Os líderes da oposição aclamados pelo povo são taxados de “desordeiros”. Essa é a democracia moçambicana: um regime que prende quem denuncia o crime e promove quem o comete. Quando um governo não tem um projecto para o país, só lhe resta governar pelo medo. E é exactamente isso que temos vindo assistir nos últimos anos.

Em vez de investir na educação e melhorar os hospitais, investe-se no reforço de equipamentos repressivos. A repressão virou a principal política pública. A cada eleição, a cada protesto, a cada crise social, a resposta do governo é a mesma: VIOLÊNCIA. Não há diálogo em si, não há negociações honestas e sinceras, não há disposição para ouvir a sociedade. Só há chambocos, gás lacrimogéneo, balas verdadeiras e um sistema de propaganda que transforma homicidas em heróis e vítimas em culpados.

Nos dias que correm, entre as muitas figuras que o regime escolheu como bode expiatório para justificar as suas habituais mediocridades, Venâncio Mondlane aparece como um dos alvos favoritos. Se há fome e desnutrição crónica nas crianças dos zero aos cinco anos, a culpa é de Venâncio Mondlane. Se há ciclones que destroem as nossas frágeis infraestruturas públicas, colocando a nu a incompetência e a corrupção que caracterizam a construção dessas obras, a culpa é de Mondlane. Se há protestos e tensão política, é culpa dele. Se os médicos, professores, os vogais da CNE e outras classes profissionais estão em greve, a culpa é dele. Se a pobreza aumentou nos últimos anos, a culpa é de Venâncio Mondlane. A obsessão do governo em atribuir a ele a responsabilidade por tudo de mal que acontece no país é a prova de que o regime tem medo de uma oposição forte. Mas sublinhe-se que Venâncio Mondlane não é o problema de Moçambique. Qualquer sapiens de inteligência média sabe que o problema cá pelo burgo são as pessoas que governam, que nada sabem fazer além de fabricar a pobreza e multiplicar cada vez mais o número de pessoas a viver na indigência, promover a miséria institucionalizada, a corrupção generalizada, a pilhagem dos recursos de todos nós e a repressão brutal contra quem ousa questionar essa podridão. Moçambique precisa decidir que tipo de país quer ser. Se continuar a normalizar a repressão, a aceitar que a polícia mate cidadãos sem qualquer consequência, a permitir que a culpa seja sempre dos mortos e nunca do assassino, então estaremos condenados a viver numa selva. E o silêncio diante desses abusos é uma forma de cumplicidade. É preciso recusar a narrativa mentirosa do governo, que transforma vítimas em criminosos. É preciso exigir justiça para aqueles que foram mortos apenas por exercerem o seu direito de se expressar. É preciso responsabilizar os verdadeiros culpados. Se nada for feito, amanhã, qualquer um de nós pode ser a próxima vítima. E, como sempre, a culpa será nossa e não dos nossos algozes. (Redação)

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